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Cumulonimbus: um continente para a complexidade1



Davi Berciano Flores 2, São Paulo

Marina Ferreira da Rosa Ribeiro 3, São Paulo

 

Este trabalho visa percorrer algumas concepções de espacialidade na obra de Wilfred Bion, mapeando a busca do autor por múltiplas formas de alcançar o espaço psíquico, a m de abarcar a complexidade do fenômeno clínico e do encontro entre duas mentes. Os principais pontos da obra do autor são a Teoria do Pensar (1962/2022), Transformações (1965a/2014) e a noção de Cesura (1975/2014). Para percorrer tal percurso, tomaremos como ponto de partida – ou hipótese definitória – um fragmento intersubjetivo extraído de um atendimento clínico, no intuito de abordar os vértices do desenvolvimento do pensamento bioniano. Em busca por um arcabouço que contemple a noção de complexidade, colocaremos a obra do autor em diálogo com passagens da obra de Freud, assim como com textos de James Grotstein (2003) e de Edgar Morin (2015).


Palavras-chave: Bion; Complexidade; Espacialidade; Psicanálise; Transformações; Cesura, Morin

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1 Este artigo foi extraído da tese de doutorado de Davi Berciano Flores, atualmente em curso sob orientação da Profa Dra Marina Ferreira da Rosa Ribeiro, no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP), realizada com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

2 Psicólogo e psicanalista. Professor do Centro de Estudos Psicanalíticos (CEP) e da especialização em psicanálise da Universidade Presbiteriana Mackenzie, mestre e doutorando em Psicologia Clínica no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP), membro do LIPSIC e do GBPSF.

3 Psicanalista. Professora Doutora do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP) e coordenadora do LIPSIC.

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Uma hipótese de definitória 4 – a nuvem


Certa vez, um paciente5, com cerca de trinta anos de idade, enquanto me encarava de baixo para cima como um menino, fechava os olhos e, ao fazê- lo, espremia-os. Depois abria-os, fixando-os nos meus, em silêncio. Sua boca contorcia-se, como se investigasse um espaço bagunçado – pelos movimentos dela, não sei bem como, via o seu corpo todo se movimentar em algum tipo de investigação interna. Com um semblante de expectativa, ele parecia buscar um jeito de exprimir o que lhe passava internamente, já com um perceptível anseio delirante de que eu fosse lhe entender, independente das palavras que viesse a encontrar. Seus olhos cerrados eram, a meu ver, tanto um tique quanto um esforço para encontrar algum pensamento na escuridão. A bem da verdade, fechar os olhos é um evento significativamente trabalhoso para alguns pacientes mais psicóticos: a escuridão não é, a priori, um espaço para pensar. Do mesmo modo que uma criança, ao apagarmos a luz, pode se contrair diante de um nada terrorífico.


Depois de tanto espremer os olhos, neste esforço de apertar o escuro até surgir uma forma, o paciente arregala os olhos e diz, com cara de insight: “tem uma nuvem na minha cabeça! Sabe?”. Diante da pressão ansiosa desta aparente busca por alguém que o entendesse, não pude me conter: “Sei! Claro!”. Talvez eu já estivesse preparado para responder

afirmativamente antes que qualquer forma surgisse em sua mente. Uma conversa estava pronta antes de um pensamento surgir6. Ele buscava algo para me entregar, queria uma conexão, e foi isso o que lhe dei.


Saí desse encontro com uma sensação cômica – uma nuvem! Um gigante inalcançável de partículas aglomeradas aguardando uma precipitação. Existiria


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4 A expressão hipótese definitória é utilizada por Bion (1963/2014) como um dos elementos de sua Grade, especificamente a primeira casa do eixo referente aos usos do pensar. A expressão tem um valor próximo do senso comum para o leitor não habituado à obra do autor, bem como um sentido mais específico para os leitores mais familiarizados com os usos da Grade. De forma rápida, podemos definir hipótese definitória como uma primeira ideia com potencialidade para todas as possibilidades (López Corvo, 2008, p. 183). Trata-se, em outros termos, de um ponto de partida para uma investigação, definindo um campo de busca (Symington & Symington, 1999, p. 54).

5 Os dados apresentados foram devidamente alterados e ficcionalizados, bem como foram omitidos detalhes que pudessem permitir a identificação do paciente. Optamos por apresentar apenas a primeira parte do fragmento clínico na primeira pessoa do singular. A proposta desta apresentação consiste em priorizar os fatos identificados na relação da dupla analítica, a partir do que denominamos “fragmento intersubjetivo”, ou seja, aquilo que mobiliza a mente do analista a articular elementos clínicos com aspectos teóricos a partir de sua visão pessoal e transitiva (Ribeiro, Flores & Ramos, 2022).

6 Esta observação aproxima-nos da noção de pré-concepção na obra de Bion (1962/2022), que corresponde à noção de pensamentos vazios em Kant. Consiste em um “estado incipiente” e traduz o “status de um estado expectante”, no qual há concepções (moldes, sondas) que buscam realizações, como no modelo inato do bebê que nasce com uma pré-concepção do seio, ou seja, um estado expectante, um molde, um pensamento vazio em busca de uma realização (Sandler, 2021, p. 859).

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forma mais volátil e imprecisa para expressar o que se passava dentro de si? Mais do que isso, a fisionomia de “eureca!”, de quem havia encontrado a palavra perfeita, associada à imprecisão volumosa e trespassável de uma nuvem, levou-me a boas gargalhadas silenciosas em diversos momentos após este encontro.


Uma nuvem! Acompanhada de uma expressão emocional de conclusão implacável.

Hoje consigo entender que meu humor buscava, também, digerir uma experiência que continha clivagens:


– O semblante de insight diante de uma experiência mal compreendida;

– O senso de revelação após uma visão turva e imprecisa;

– Minha consequente resposta desconectada do que eu, de fato, pensava;

– Os olhos espremidos levando à ilusória impressão de que pensamentos

surgiriam da contração muscular.


Um aglomerado complexo de partículas – teoria do pensar


“O silêncio dos espaços infinitos me apavora.” (Blaise Pascal, 1670)

“Para ver um mundo em um grão de areia

E um céu em uma flor selvagem,

Segure o infinito na palma da mão

E a eternidade em uma hora.”

(William Blake, 1803)


Encontramos correspondências entre os dados dissociados citados acima e o pensamento de Bion (1957/2022), quando ele diz que o estado psicótico de mente leva a clivar partes da personalidade ao projetá-las, mutilando atividades mentais (que bem podem ser alegoricamente vistas como pequenas gotículas de água em estado de suspensão). Em outro texto, Bion (1953/2022, p. 40) já havia demonstrado como as expressões verbais de um paciente esquizofrênico podem deflagrar clivagens: “Como é que o elevador sabe o que fazer quando pressiono dois botões ao mesmo tempo?”, cita ele quando, ao descrever a fala de um paciente psicótico, encontra estados que geram dois movimentos antagônicos. Bion refere- se a gestos, frases, estados mentais, que indicam dois sentidos simultaneamente, resultando em uma tendência psíquica de ruptura ou de agrando a mutilação do pensamento, a falta de conexões entre dois botões que podem nos levar a sentidos distintos.


Ao tratar deste tipo de paciente em que a parte psicótica da personalidade está

significativamente presente, Bion (1957/2022, p. 90) diz:


Descobri não apenas que há pacientes que recorreram cada vez mais ao pensamento verbal comum, mostrando assim uma maior capacidade para esse tipo de pensamento, e maior consideração pelo psicanalista como um ser humano comum, mas também que esses mesmos pacientes pareciam estar se tornando cada vez mais hábeis neste tipo de discurso aglomerado, em vez do discurso articulado. O ponto principal sobre o discurso civilizado é que ele simplifica muito a tarefa do pensador, ou do orador. (...) Há algo de extraordinário nesse tour de force pelo qual modos de pensamento primitivos são usados pelo paciente para enunciar temas de grande complexidade. (grifo nosso)


Nesta citação encontram-se, em status nascendi, ideias que se desdobrarão em partes significativas de sua obra e outras que iluminam o episódio da nuvem na cabeça. Comecemos pelo fragmento clínico: Bion fala em “discurso aglomerado, em vez do discurso articulado”, ou seja, que, neste encontro, a nuvem, um aglomerado quase amorfo, ocupou o lugar do que poderia ser a descrição, narrativa, de uma experiência interna complexa. Fora do discurso civilizado, que facilita a tarefa do pensador, estiveram o paciente (em contração) e o analista (em descontração) tentando digerir a tal nuvem que se formou. Por fim, Bion fala no tour de force, ou seja, os olhos espremidos em busca de imagens internas, o esforço bem-sucedido através do qual pensamentos primitivos alcançam a grande complexidade da mente. Vejamos agora a citação de uma perspectiva teórica: Bion já trata de aglomerações e articulações como formas distintas de expressão de um pensamento. Refere-se, ainda, a um pensador cuja tarefa é facilitada se os pensamentos já lhe chegam articulados em ideias. Encontra, por fim, continuidade e ruptura entre pensamentos primitivos e a “grande complexidade”. Podemos fazer duas perguntas que, em um nível, são evidentemente distintas, mas, em outro, apontam para a mesma questão:


1.  Como é possível enxergar elementos posteriores da obra de Bion,

apresentados entre 1962 e 1977, em um parágrafo de 1957?

2.  Quais destinos teria uma nuvem dentro da cabeça?


Cinco anos depois da citação acima, Bion apresenta, em A teoria do pensar (1962/2022), o início de uma importante reviravolta epistemológica em sua obra, resultante de uma série de textos desenvolvidos ao longo da década de 50. Foi quando ele passou a abordar o funcionamento psicótico e suas características, dentre elas os ataques aos vínculos (ou elos de ligação), que resultam em uma mutilação das associações, ruptura de relações e, em decorrência, perda da capacidade de simbolização (Bion, 1959/2022); a identificação projetiva, através da qual partes do self são expulsas e projetadas em um objeto; a tendência do psicótico em optar pela ação ao invés do pensar, ou um pensar com características de ação (acting out), fato constatável nos mecanismos de expulsar algo ou atacar os vínculos entre dois elementos quaisquer.


Quando pede para ver um brinquedo, uma criança estica a mão no intuito de pegar, e é para esta direção que o pensamento psicótico aponta, no sentido de transformar as atividades do pensar (e as funções do ego) em ações que implicam em sensorialidade e concretude. Bion (1953/2022, pp. 38-39) explicita isso na seguinte passagem:


Esquizofrênicos empregam linguagem de três modos interligados: como modo de agir; como método de comunicação; e como modo de pensar. Quando outros pacientes se dariam conta de que a necessidade seria pensar, um esquizofrênico demonstrará preferência em agir. Em consequência, um esquizofrênico passaria por cima de um piano para obter entendimento sobre o motivo de alguém tocar um piano. Reciprocamente, se um esquizofrênico tiver um problema cuja solução depende de uma ação – por exemplo, o ato de nos transladarmos de um lugar para outro –, lançará mão de um pensamento, um pensamento onipotente, à guisa de meio de transporte.


Quando Bion trata do trânsito entre a busca por entender e a subsequente transformação disto em um gesto, ou o revés, a transformação de um gesto em um pensamento onipotente, estamos diante de diferentes formas através das quais um pensamento pode se manifestar e, mais do que isso, diferentes expressões, no espaço dos pensamentos. Uma das grandes viradas da obra de Bion consiste na compreensão de que, nas áreas psicóticas, não apenas partes do self podem ser ejetadas para fora do funcionamento mental, como também qualquer função mental.


Em Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico (1911/2010), Freud aponta que, uma vez inaugurado o princípio de realidade, que consiste na capacidade de reconhecer a falta, tolerar a frustração que ela gera e, por fim, substituí-la por um processo interno, surgem funções do ego, capazes de oferecer um caminho interno de possibilidades diante da inviabilidade de perpetuar a hegemonia absoluta do princípio do prazer na realização imediata com o objeto de satisfação (no caso do bebê, a ausência do seio materno). A falta de um objeto de satisfação inaugura um novo espaço interno ou, dentro do pensamento freudiano, podemos entender que a necessidade de descarga, originalmente regida pelo princípio do prazer, agora se vê impedida e busca novas vias de realização, internas. Estamos, mais uma vez, dentro do pensamento freudiano, neste movimento entre buscas de dentro para fora (a descarga busca um objeto externo, ou, fenomenologicamente, alguém passa por cima de um piano) e retornos do fora para dentro (na ausência do objeto, a descarga busca um objeto interno ou, fenomenologicamente, surge um pensamento onipotente).


Para Freud, as funções do ego, estas possibilidades internas, consistem nas seguintes categorias: atenção (sensorialidade e consciência), notação (memória e registro), julgamento (capacidade de avaliar se uma ideia é falsa ou verdadeira), descarga motora (capacidade de alterar a realidade) e, por fim, o pensamento em sua totalidade, visto como um campo capaz de tornar a frustração tolerável.


Na obra de Freud, sem o incremento bioniano de que as funções do ego podem se derramar para fora da mente (e, claro, é importante citarmos Klein7 como a ponte fundamental para que ocorra tal transformação teórica), o ego consiste em uma instância interna e, mais especificamente neste momento de sua obra, trata-se de um ego que se aproxima da noção de consciência8. Ao longo de sua obra, Freud avança no intuito de identificar uma parte significativa de inconsciência do ego, tirando seu poder enquanto instância controladora, mas, ainda assim, deixando-o como centralizador de um sistema.


Grotstein (2003) escreveu sobre o estranhamento vivenciado quando, ao despertar, não se reconhecia como o sonhador do sonho que teve. Trata-se de um motivo aparentemente singelo, se considerarmos a complexidade das páginas que o seguem, mas foi a nuvem de Grotstein: a hipótese definitória que inicia um campo de pensamento. Para o autor, a questão da autoria dos fenômenos mentais é questionável, e a maneira como tratamos destes é fundamental para pensarmos os fenômenos clínicos e os eventos que se passam dentro de nós.

Dentro da mesma questão, Grotstein (2003, p. 24) atesta que o ego freudiano,


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7 Dentre os textos que poderíamos citar, destacamos Notas sobre alguns mecanismos esquizoides (Klein, 1946/1991), no qual a autora apresenta a noção de identificação projetiva, que se tornará um conceito importante dentro do movimento kleiniano. Na obra de Klein, a identificação projetiva é vista como um mecanismo de defesa, em que partes do self do bebê, em sua primitividade, são expulsas e depositadas dentro do corpo da mãe. Elevada a um conceito na obra de outros autores – incluindo Bion –, a identificação projetiva torna-se uma via de comunicação, na qual elementos projetados para fora do self do bebê (e do paciente) podem ser digeridos pela mãe (e pelo psicanalista) para então serem reintrojetados de forma mais digerida e, portanto, tolerável.

8 Bion retoma a ideia freudiana, apresentada em Interpretação dos sonhos (1900/2019): a consciência é um órgão de apreensão psíquica (Bion, 1962b/2021).

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com sua “latinidade muito alienante”, “dissimula sua natureza numênica9 e misteriosa como ‘eu’, o sujeito da experiência, especialmente em seus pontos inconscientes”. Aqui, Grotstein está dentro da tradição bioniana de pensamento, ao tratar do engodo que a noção de “ego” pode acarretar. A natureza numênica de que fala, “númeno”, é o nome dado por Kant à coisa-em-si, ou seja, aquilo que existe independentemente de como somos capazes de percebê-lo. A ideia de “ego” sugeriria uma autoria sobre fenômenos que, na realidade, portam uma qualidade fundamentalmente numênica. Ou ainda, dito de outro modo, o ego freudiano parece ser o autor dos pensamentos, uma fábrica que molda o próprio sujeito, enquanto, na realidade, trata-se de um nome que indica um contorno quando, clinicamente, o fenômeno consiste em significativa imprecisão e falta de alcance. Poderíamos dizer, ainda de um outro modo, que a noção de “ego” consiste em um insight de forma sobre um terreno informe. Nas palavras de Grotstein (2003, p. 23, grifos do autor):


Encontrei-me tentando desconstruir o conceito do sujeito, mais particularmente aquele que conhecemos como “Eu”, diferenciado de “mim” ou “self”. Comecei a perceber que eu queria trazer entidades psíquicas, o inconsciente e seus habitantes (seu sujeito interno e seus objetos internos), assim como o ego e o id, para fora das sombras e névoas que os envolveram e os obscureceram na roupagem enganosa e enganadora da ciência determinística que foi a obra de Freud, e restaurá-las à sua verdadeira vida.


Edgar Morin (2015, p. 5) aproxima-se da observação de Grotstein: “O conhecimento científico também foi durante muito tempo e com frequência ainda continua sendo concebido como tendo por missão dissipar a aparente complexidade dos fenômenos a fim de revelar a ordem simples a que eles obedecem”. Para Morin, os modos simplificadores de conhecimento “mutilam mais do que exprimem as realidades ou os fenômenos de que tratam”. Dissipar e mutilar, curiosamente são os dois verbos utilizados por Morin para tratar dos modos de conhecimento que nos impedem de alcançar a complexidade. Estamos aqui, evidentemente, em um campo de conexões entre o pensar psicótico (que mutila e dissipa) e o pensar científico. Parece-nos que se trata de pensar quais são as características psicóticas de uma metodologia de investigação, isto é, de que maneiras dissipamos e mutilamos o conhecimento para podermos alcançar o âmbito numênico10.

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9  A noção de númeno, oriunda da obra de Kant, diz respeito ao “intuível para além do fenômeno que não pode ser concebido”. Corresponde ainda à “coisa-em-si, a realidade absoluta da qual não temos conhecimento empírico ou sensível, mas que podemos alcançar somente pela via da intuição.” (López Corvo, 2008, p. 238).

10  Podemos pensar que o âmbito numênico é justamente o que não conseguimos captar das coisas,

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Quando não podemos reduzir as coisas a uma ideia simples, estamos diante do terreno da complexidade, de acordo com Morin (2015). Seria a nuvem uma ideia simples para expressar um estado de mente? Para Morin (2015, p. 5), a ideia de complexidade envolve “uma pesada carga semântica, pois traz em seu seio confusão, incerteza, desordem”.


Retomando o debate a respeito do ego freudiano, não se trata de considerar Freud ingênuo em suas construções. Pelo contrário, ele inaugura um caminho para a complexidade e, apesar de seu sistema de pensamento resultar em uma série de aspectos lógicos, teorias de causalidade e determinismos que circunscreviam a vida mental, Freud (1910/2013, pp. 128-129) dava notícias de que, por debaixo de tal sistema, desta tentativa de domar os fenômenos da mente, existia algo fora de seu alcance: “Nisso esquecemos que praticamente tudo na vida humana é acaso (...), acaso, porém, que participa das leis e da necessidade da natureza e não tem nenhum nexo com nossos desejos e ilusões”.


Esta teoria freudiana, em Bion (1962/2022), resulta no fato de que qualquer função do ego pode também ser expulsa e, portanto, ser identificada fora do continente psíquico. Assim, uma memória é capaz de surgir encapsulada em um objeto ou alguém pode estar cônscio dos pensamentos oriundos de outra mente, que expulsou para fora uma parte da capacidade de conscientizar-se. Esta teoria, em última instância, resulta em uma impossibilidade generalizada de identificar em que os processos mentais se encerram ou quais as fronteiras daquilo que é próprio, singular, autoral, pessoal.


O fato de que os pensamentos não têm um lugar, uma sede na qual irão surgir, de que não são patenteados em algum momento, ilumina a vida psíquica de outra maneira: por que um analista lembra de determinado analisando ao abrir o armário da cozinha de sua casa? Como é possível que a lembrança de uma analisanda venha à mente de seu analista toda vez que ele passa pela mesma bifurcação em certa rua? Naqueles espaços físicos, naqueles lugares, no desenho dos caminhos ou no ranger da dobradiça do armário, estão os pensamentos aguardando um pensador. De outra perspectiva, um paciente pode dizer que estava há pouco pensando em algo, mas que, no momento em que entrou na sala do analista, não consegue mais alcançar tais ideias. Estaria o pensamento em repouso na sala de espera? Um outro paciente comenta que, ao vir para a análise, errou, pela segunda vez, o mesmo ponto


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aquilo que não é perceptível, mas que supomos estar lá. Levar isto em consideração diz mais de uma concepção de objeto de investigação, bem como da capacidade de alcance do conhecimento científico. Quando pensamos em características psicóticas de uma metodologia de investigação, estamos nos referindo ao fato de que há textos/obras que privilegiam mais o âmbito numênico, reconhecem-no, enquanto outras construções teóricas consideram menos este campo como algo que compõe o modelo teórico. Neste sentido, há metodologias que são mais mutiladoras da complexidade e outras menos.

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do caminho, entrando em uma rua antecipadamente Diz ainda desconfiar que, em ambas as vezes, pensava na mesma coisa. Poderíamos entender que uma parte do pensamento está contido em sua mente, mas que algo segue identificado em uma conversão invisível na tela do Waze11? O que esta linha invisível, que indicaria um outro caminho (entendido pelo paciente como “errado”), seria se pudesse ser expressa em palavras? Uma das tantas hipóteses esboçáveis: “Cansa-me tanto pensar neste assunto, que é melhor eu desviar meu caminho da análise”12.


Abre-se, na Teoria do pensar (Bion, 1962/2022), um campo de infinitas possibilidades de interação entre um aparelho para pensar pensamentos e pensamentos em busca de um pensador. Temos aqui a primeira expressão do espaço de complexidade na obra de Bion, no qual pensamentos têm trânsito livre entre mentes e dentro da mente, entre objetos, entre pontos distintos do espaço, enquanto pensadores buscam expressá-los através de seus aparelhos de pensar. Como registro das possibilidades destes movimentos, Bion busca um eixo cartesiano, ou seja, duas coordenadas: uma representando os usos do pensar; a outra, a genética dos pensamentos. A interação entre uma coordenada e outra, as infinitas formas através das quais um pensamento pode se expressar em um pensador, ou um pensador pode encontrar um pensamento, resulta em inúmeros pontos de encontro neste espaço, figurado matematicamente, mas que expressa possibilidades do pensar.


Dentro deste modelo epistemológico, a proposta é pensar relações. Um eixo em relação com o outro gera uma interação, da qual conhecemos os efeitos, as evidências13. Elementos colidem, outros se aproximam, projeta-se algo para dentro de outro algo, um outro algo é introjetado de volta, constituindo inúmeros movimentos de relação que consideram movimentos internos e externos, fenômenos intrapsíquicos e intersubjetivos. Morin (2015, p. 6), apesar de não citá-lo, parece descrever o esforço de Bion em sua teoria do pensar:


Enquanto o pensamento simplificador desintegra a complexidade do real, o pensamento complexo integra o mais possível os modos simplificadores de pensar, mas recusa as consequências mutiladoras, redutoras, unidimensionais e finalmente ofuscantes de uma simplificação que se considera reflexo do que há de real na realidade.


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11 Aplicativo de localização via GPS para carros, que indica caminhos através dos mapas para chegar a um destino.

12   Freud (1909/2013) aproxima-se da mesma ideia ao tratar, no campo da linguagem, de deformações por elipse. Nestas, palavras são escandidas da frase, de modo que o entendimento de algo pode ocorrer com extensão de representação. Era assim que uma única palavra poderia ser evitada ou dita de forma ritualística pelo Homem dos Ratos, evocando uma ideia sem necessariamente acessá-la. No caso deste paciente, o conjunto de palavras pode regredir para a ação contida na frase, reduzindo a articulação de pensamento “Cansa-me tanto pensar neste assunto, que é melhor eu desviar meu caminho da análise” para a ação “desviar meu caminho da análise”, abandonando o campo das ideias e convertendo-se em uma descarga motora que as palavras poderiam conter.

13   Em um momento mais avançado de sua obra, Bion (1976a/2014) vale-se do termo “evidências”, que pode servir tanto como leitura de seu paradigma epistemológico quanto de seus futuros constructos voltados a uma psicanálise predominantemente ontológica.

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Podemos fazer um simples cálculo de probabilidade ao pensarmos nas possibilidades de combinação dentro de um sistema complexo (uma mente que gera pensamentos) e no número de combinações possíveis na interação entre dois sistemas complexos (uma mente e outra mente, ou mentes capazes de pensar e pensamentos que buscam pensadores). Evidentemente, há uma profusão de possibilidades quando levamos em consideração o encontro entre dois sistemas. Dentro da tradição bioniana, não se pode mais falar em uma autoria sobre os pensamentos ou sobre os fenômenos psíquicos em geral, já que sempre existem dois sistemas em contato. O resultado desta impossibilidade consiste em uma mudança de linguagem, de comunicação dos fenômenos mentais, uma maior parcialidade diante do fato de que somos, sempre, sistemas complexos em contato com coisas que não sabemos bem o que são.


Desta forma, Bion (1962b/2021) demonstra como podemos tratar um fenômeno de relação entre elementos sem recorrer a uma autoria, o que poderia resultar, inclusive, em um tipo de acusação, revertendo a perspectiva de um fenômeno dinâmico à estática de um lugar, de uma origem, de um ponto imóvel no espaço. Primeiramente, Bion (p. 24) aponta qual seria a versão comum, que pressupõe uma autoria, um lugar fixo:


A inveja que X sente de seus sócios é um fator que temos que levar em conta em sua personalidade” é uma formulação que qualquer leigo poderia fazer e pode significar muito ou pouco; seu valor depende de nossa avaliação da pessoa que faz a formulação e do peso que ela mesma dá às próprias palavras. A força da formulação é afetada se eu conecto ao termo “inveja” o peso e o significado que lhe foram dados pela sra. Klein.


Em seguida, Bion propõe como seria a mesma observação se tomássemos os elementos observados como funções e fatores, fora do campo de autoria, levando- nos a um delicado senso de movimento, dinâmico, transitivo:


Agora, suponha uma outra formulação: “A relação de X com seus sócios é típica de uma personalidade na qual a inveja é um fator”. Essa formulação expressa a observação de uma função na qual os fatores são transferência e inveja. O que se observa não é a transferência ou a inveja, mas algo que é uma função de transferência e inveja. À medida que uma análise prossegue, é necessário deduzir novos fatores a partir das mudanças observadas na função e distinguir diferentes funções.


Quando Bion diz à medida que uma análise prossegue, entendemos que a observação de uma relação é um ponto no tempo, não devendo ser considerada mais do que isso. No momento seguinte da sessão, tal observação já pode ter se alterado. Vejamos agora o que Grotstein (2003, p. 37) tem a dizer sobre o dia que despertou e não se identificou com o sonhador de seu sonho, tampouco com o sonho sonhado:


Percebi que admitimos este incrível fenômeno sem questionar. Dizer “tive um sonho na noite passada” é, de certo modo, presunçoso. Tudo o que podemos honestamente dizer é “fui privilegiado de testemunhar e experimentar uma parte de um sonho na última noite. Gostaria de poder ter testemunhado e experimentado o sonho todo”.


Notamos invariâncias14 significativas entre as citações. Tanto Bion quanto Grotstein buscam uma linguagem que seja capaz de expressar movimento e libertar o sujeito da autoria sobre os pensamentos, propondo a transitividade como solução à busca por um lugar de origem. Grotstein (2003, p. 47, grifos do autor) segue:


A simples verdade ocorreu-me no momento em que despertei, de que eu não poderia ter sonhado este sonho, primeiro porque eu geralmente não falei do jeito que os personagens do sonho falaram, e segundo porque eu estava dormindo na hora que o sonho aconteceu – portanto, eu não poderia ter sido seu sonhador!

 

Para Grotstein (2003), portanto, há um sonhador que sonha o sonho e um sonhador que entende o sonho depois de sonhá-lo. Trata-se, no nosso entendimento, de uma revisitação ao pensamento bioniano, mas a partir de outra perspectiva. Também poderíamos entender que ambos revisitam o pensamento freudiano,


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14 Invariância surge como conceito na obra de Bion somente em Transformações (1965a/2014), tratando-se de um conceito matemático do século XIX, depois aplicado em outras ciências práticas, como a física, a química, a teoria musical e, por fim, a psicanálise de Bion. A noção de invariância indica que, entre dois fenômenos, algo permanece inalterado, ainda que sejam de naturezas distintas. Deste modo, é possível depreender que, entre eles, há algo que nos permite associá-los em alguma perspectiva.

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uma vez que as noções de processos primários e secundários apontavam para a existência de uma diferença significativa de experiência entre o fenômeno do sonhar e o discurso manifesto sobre este.


Ao fim de sua obra, Bion (1979/2014, p. 473) versa sobre o assunto e demonstra a exploração destas mudanças de estado. Em seguida veremos de forma mais detalhada como o autor chega ao tema, mas vamos antecipar a citação, dado que conversa com o Bion de 1962 e com Grotstein:


E segue (pp. 474-475):


Se o sono (“S-state”) é considerado como digno de respeito, assim como a vigília (“W-state”) – se o árbitro for imparcial – então onde estivermos, o que se vê e experimenta deve ser considerado como tendo um valor que é igualmente válido. Isto está implícito quando Freud, como muitos antecessores, considera os sonhos dignos de respeito. Assim poderemos dizer que a elaboração da vigília deverá ser considerada tão digna de respeito quanto a elaboração onírica.


Qual direção um elemento tomará em nossa mente? A nuvem, por exemplo. De uma determinada perspectiva, poderia ser pensada como um aglomerado de associações que, regressivamente, encontram-se transformadas em partículas e acumuladas em um continente informe. De outra, pode consistir em uma forma rudimentar encontrada para representar um campo de complexidade que não se converteu em possibilidades associativas. Esta dúvida de sentido – ou, podemos. ainda pensar, este dilema de direção15, a questão sobre qual botão do elevador será apertado pela mente (para cima ou para baixo, em direção à complexidade articulada ou à primitividade aglomerada) – resulta em esforço para simplificar o que se entende por complexidade.


As provocações de Bion, assim como os questionamentos de Grotstein, apontam para a mesma direção: hierarquizar os estados de mente, atribuindo-lhes diferentes valores – ou, ao invés disso, atribuir uma mesma autoria a estados distintos de mente –, pode nos levar a leituras enviesadas, mutilando a complexidade dos processos psíquicos. Ao considerarmos o campo de possibilidades, é preciso reconhecer os contraditórios, ou seja, que a complexidade pode ser aglomerada e a primitividade articulada. Em termos práticos, é possível que um analisando, com imprecisão e poucas palavras, aproxime-se mais da própria experiência emocional do que alguém que, prolixamente, ocupa a sessão com centenas de palavras.


O que você vê naquela nuvem? – transformações

 

Assim como Bion apresenta mudanças de direção em seus pensamentos, e justamente para incorporar, à teoria, os fatos até aqui demonstrados, apresentaremos agora um plot twist, ou seja, uma repentina mudança de direção no enredo da história clínica que protagoniza este capítulo.


Poucas semanas após o encontro com referido paciente e sua visão interna de uma nuvem – e após as íntimas gargalhadas do analista com tal ideia –, repentinamente ele próprio encontra-se angustiado no consultório de seu analista, deitado no divã, dizendo: “Acho que quem está com uma nuvem dentro da cabeça, agora, sou eu”. Que fenômeno seria este?


De maneira súbita, uma expressão aparentemente inadequada se revela, para o analista, como uma linguagem de êxito16 para expressar a própria experiência emocional. O que o analista viu na nuvem do paciente? Tomando como perspectiva o tempo, aparentemente o analista primeiro disse que entendeu para, depois, de fato entender o que o paciente dizia naquela ocasião. Teria vivido uma inversão


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15  Nas palavras de Bion (1976b/2014, p. 125): “A cesura que nos levaria a acreditar; o futuro que nos levaria a acreditar; ou o passado que nos levaria a acreditar – isso depende da direção em que você está viajando e do que você vê”. A questão sobre a direção que tomamos para observar um fenômeno é tema recorrente na obra de Bion, e cada vez mais premente à medida que ela avança. A noção de cesura, citada neste trecho, será apresentada mais adiante.

16 Language of achievement, traduzido como “linguagem de êxito” ou “linguagem de consecução”, consiste em uma noção de Bion que busca dar nome à busca por interpretações e expressões que tenham “durabilidade e extensão”, tendo efetividade na realidade psíquica e material de um paciente. (Sandler, 2021, p. 508)

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no oposto17, como no trabalho dos sonhos em Freud (1900/2019)? Existiria algo de si que o entendia, e do qual se defendeu pela angústia de ser habitado por uma nuvem? Rir teria sido uma atitude de viver o paradoxo do absurdo nebuloso que é ser habitado, eventualmente, por uma nuvem? Ou será que, agora, entendia mesmo algo? Ou simplesmente valia-se da mesma expressão para alcançar um fenômeno radicalmente distinto? Cumulonimbus, um continente de partículas expelidas que são identificadas de maneira projetiva em um invólucro amorfo, carregado de possíveis precipitações de tempestades emocionais.


A busca por estabelecer uma hierarquia, por vezes tipicamente freudiana, por outras tipicamente humana, resulta, para o pensamento complexo, na tentativa de transformar um campo de possibilidades em uma seta, dando-lhe um único sentido (e um único destino). De algumas perspectivas, a complexidade tem seu gérmen na teoria freudiana: a inversão no oposto (Freud, 1900/2019), característica do trabalho dos sonhos, bem como a noção de lembranças encobridoras (Freud, 1899/1969, 1901/1969), aponta para um funcionamento inconsciente que não concebe cronologias ou hierarquias, mas oferece expressão aos pensamentos de forma plástica, assim como em múltiplas dinâmicas e camadas. No campo da complexidade, é possível primeiro dizer algo e depois sentir o que foi dito; é possível uma nuvem nascer em uma mente e, com rajadas de vento típicas da identificação projetiva, arrastar-se até outra. Seria incauto definir qual a natureza da nuvem, se é do analista ou do analisando. Conforme Flores (2021), tolera-se o paradoxo: a nuvem é do analista, é do analisando, bem como é, neste instante, já do leitor do presente texto, e de algum modo está entre nós.


Aberto tal eixo, um espaço de possibilidades, Bion inaugura o tema das transformações, algo que entendemos ser, até certo ponto, uma continuidade e, ao mesmo tempo, o início de uma ruptura com sua teoria do pensar. A noção de transformações, enquanto conceito, talvez nasça antes do livro que carrega seu nome, Transformações: passagem da aprendizagem para o crescimento (Bion, 1965a/2014). O título já é indicativo de que o livro viria do aprender, como em Aprender com a experiência (Bion, 1962b/2021), mas encontraria uma solução que rumaria disto para outra lógica, a do crescer.


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no oposto17, como no trabalho dos sonhos em Freud (1900/2019)? Existiria algo de si que o entendia, e do qual se defendeu pela angústia de ser habitado por uma nuvem? Rir teria sido uma atitude de viver o paradoxo do absurdo nebuloso que é ser habitado, eventualmente, por uma nuvem? Ou será que, agora, entendia mesmo algo? Ou simplesmente valia-se da mesma expressão para alcançar um fenômeno radicalmente distinto? Cumulonimbus, um continente de partículas expelidas que são identificadas de maneira projetiva em um invólucro amorfo, carregado de possíveis precipitações de tempestades emocionais.

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A busca por estabelecer uma hierarquia, por vezes tipicamente freudiana, por outras tipicamente humana, resulta, para o pensamento complexo, na tentativa de transformar um campo de possibilidades em uma seta, dando-lhe um único sentido (e um único destino). De algumas perspectivas, a complexidade tem seu gérmen na teoria freudiana: a inversão no oposto (Freud, 1900/2019), característica do trabalho dos sonhos, bem como a noção de lembranças encobridoras (Freud, 1899/1969, 1901/1969), aponta para um funcionamento inconsciente que não concebe cronologias ou hierarquias, mas oferece expressão aos pensamentos de forma plástica, assim como em múltiplas dinâmicas e camadas. No campo da complexidade, é possível primeiro dizer algo e depois sentir o que foi dito; é possível uma nuvem nascer em uma mente e, com rajadas de vento típicas da identificação projetiva, arrastar-se até outra. Seria incauto definir qual a natureza da nuvem, se é do analista ou do analisando. Conforme Flores (2021), tolera-se o paradoxo: a nuvem é do analista, é do analisando, bem como é, neste instante, já do leitor do presente texto, e de algum modo está entre nós.


Aberto tal eixo, um espaço de possibilidades, Bion inaugura o tema das transformações, algo que entendemos ser, até certo ponto, uma continuidade e, ao mesmo tempo, o início de uma ruptura com sua teoria do pensar. A noção de transformações, enquanto conceito, talvez nasça antes do livro que carrega seu nome, Transformações: passagem da aprendizagem para o crescimento (Bion, 1965a/2014). O título já é indicativo de que o livro viria do aprender, como em Aprender com a experiência (Bion, 1962b/2021), mas encontraria uma solução que rumaria disto para outra lógica, a do crescer.


Neste livro, que seguiremos chamando apenas de Transformações, Bion conduz sua teoria do pensar para outro patamar, tratando da observação das mudanças que um pensamento pode ter em nossa mente e, de maneira mais específica, de como o espaço ao nosso redor – o qual, como já sabemos, mal pode ser definido nitidamente como interno ou externo –, só pode ser alcançado através de transformações, dado que estamos sempre diante de algo que é, ao mesmo tempo, tangível e intangível. As transformações são esforços parcialmente bem-sucedidos e, portanto, parcialmente frustrados, de alcançar o incognoscível, o âmbito numênico, a coisa-em-si kantiana, ou o que Bion passou a chamar de O, aquilo que está lá mas que, diante de nossa limitação de percepção (e do mistério envolvido em qualquer relação de objeto), jamais será desvendado pelo conhecimento.


Em termos epistemológicos, Bion dá, em sua teoria, um lugar privilegiado para a verdade na condição de algo inalcançável, incognoscível. Justamente por ter esta característica, as expressões humanas são esforços de observação, tentativas de agarrar o intangível, que segue mostrando sua faceta misteriosa aos pensadores. Monet, ao pintar um campo de papoulas, encontra a transformação de uma experiência por meio de manchas de tinta. Com sorte e a certa distância do quadro, seremos capazes de identificar, com nossos olhos, a experiência de Monet que se interlaça, de alguma maneira, com a nossa.


Quando o paciente diz ter uma nuvem na própria mente, ele pinta com poucas palavras e gestos uma experiência. O analista, como em uma exposição, precisa de uma determinada distância (dias) para encontrar uma invariância – e, até lá, irá rir como uma forma de se defender e mantê-la em seus pensamentos, até achar algo que lhe permita uma conexão com a experiência de seu analisando, conduzindo-os a duas pinturas com características parecidas. É desta forma que Bion extrapola sua teoria das observações para teorias psicanalíticas: existiriam transformações kleinianas, freudianas, etc, ou seja, teorias que encontraram invariâncias sobre fenômenos psíquicos que muitos de nós conseguimos observar.


A noção de transformação já vinha sendo visitada pelo autor anteriormente, no livro Elementos de psicanálise (Bion, 1963/2014), quando fala de transformações de elementos-beta em elementos-alfa, ou seja, na possibilidade de mentalizar uma experiência sensorial que é sentida como coisa. Vemos tal transformação quando o paciente espreme seus olhos e busca uma via de encontrar, em uma palavra e busca por entendimento, algo que ele vive internamente. No mesmo livro, Bion (1963/2014), ao se referir ao sistema auditivo, vale-se da noção de transformação “música ↔ ruído”, um fato habitualmente conhecido por nós. Podemos ouvir uma conversa como um ruído que nos incomoda ou, de repente, encontrarmo-nos curiosos querendo escutá-la. O processo capaz de converter ruído em música

consiste em uma transformação.


Para além disso, Bion considera que a capacidade de estabelecer um contato indireto com O, com o incognoscível, pode interferir na apreensão do espaço e do tempo, resultando em transformações capazes de aumentar as deformações da percepção e a natureza do pensar. Para Bion, primeiramente, há transformações das quais tratamos mais, como as transformações em K (knowledge, conhecimento), a qual é o esforço que estamos fazendo nestas linhas – ao produzirmos um texto para tratar de determinado assunto –, e as transformações em movimento rígido, equivalentes à transferência freudiana, que resultam em uma transposição, o deslocamento de uma experiência de outro espaço-tempo para um novo lugar. A transformação em movimento rígido, no plano cartesiano, resulta em uma mesma forma, deslocada no espaço, que preserva sua estrutura.


Também existem transformações mais próximas da disrupção, da deformação e da destrutividade. São as transformações projetivas, que seriam equivalentes ao mecanismo da identificação projetiva (ou seja, a expulsão e manifestação persecutória de um elemento para fora da mente), e as transformações em alucinose, que seriam a maior deformação a que a mente poderia chegar, resultando na fronteira com o colapso psíquico, caracterizada por arrogância, estupidez, avidez e destrutividade em suas mais diversas formas18. Nestes casos, a qualidade do pensamento conecta-se com a onipotência, com a sensação de controle, com a soberba.


Ao pensar nas transformações em alucinose e, de modo mais amplo, no funcionamento psicótico, Bion identifica que, quanto mais hiperbólica for uma transformação, ou seja, quanto mais deformações existirem a partir do ponto zero, O, de onde se inicia um determinado processo do aparelho do pensar, maior será a qualidade estática do pensar. No sofrimento psicótico, algo precisa ser estancado, contido, antes que inunde e afogue a capacidade de pensar.


No curso das transformações mais psicóticas, Bion considera a reversão de perspectiva como um fenômeno clinicamente importante, que resulta em um congelamento do contínuo processo do pensar. Sandler (2021, p. 849) assim a define: “A origem clínicafoi uma observação: a da falsa concordância. Por exemplo: um paciente reage a uma interpretação por meio de uma negativa silenciosa, acompanhada de aceitação – por vezes encomiásticas – dessa mesma interpretação. A força que a intepretação poderia ter fica drenada e sugada”. Reverter a perspectiva


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18 Não à toa encontramos, nas transformações em alucinose, algo que se aproxima muito da crítica que Morin (2015, p. 15) faz às tentativas de eliminar a complexidade da apreensão da realidade, permitindo-nos “(...) compreender que um pensamento mutilador conduz necessariamente a ações mutilantes”.

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significa, portanto, tornar estática uma situação dinâmica.


Seria isso que o analista viveu diante da nuvem de seu paciente? Uma falsa concordância? Haveria, afinal, diante do paradoxo da falta de alcance das palavras com a urgência de concordância emocional, uma expressão melhor do que uma concordância antecipada e, portanto, falsa? Afinal, levando-se em consideração a construção de conhecimento científico (e a apreensão dos fenômenos ao nosso redor), não é assim, por vezes, que nos aproximamos das coisas?


Novamente Morin (2015, p. 10) nos acompanha e, de sua perspectiva crítica a respeito da evitação da natureza complexa dos fenômenos, permite-nos, mais uma vez, unir fenômenos clínicos e o contato com a teoria: “Gostaria de mostrar que esses erros, ignorâncias, cegueiras e perigos têm um caráter comum resultante de um modo mutilador de organização do conhecimento, incapaz de reconhecer e de apreender a complexidade do real”.


Discursos articulados tornam-se aglomerados sucintos, experiências emocionais tornam-se nuvens de partículas em tensão, a transitividade complexa torna-se a posse de um frame. Se esta solução, por um lado, salva o sujeito do movimento contínuo da vida, das fantasias, do terror eventual da experiência humana, por outro gera sofrimento, já que consiste em um esforço facilmente derrotável. Se olharmos pela perspectiva freudiana, na qual o id sobrepuja as capturas do espaço e do tempo, temos bases instintivas que vencem nosso esforço de controle. Se olharmos de uma perspectiva bioniana, O, a verdade incognoscível, são desmontados os nossos gestos de razão e concordância, com sua dinâmica desconhecida e com seu ressurgimento espontâneo no exato momento em que houver qualquer ilusão de captá-la.


Por fim, Bion apresenta, em Transformações, um último tipo de transformação, o qual não caberia no plano cartesiano, em qualquer ponto ou deformação. Seriam as transformações em O, ou seja, um momento de uníssono (at-one-ment) em que o sujeito, ao invés de entrar em contato com O, torna-se O. No lugar de aprender, há crescimento; no lugar de conhecer, há uma experiência ontológica de transformação. Se pensarmos no plano cartesiano, trata-se do local em que os dois eixos se juntam, o ponto zero, um estado em que algo não precisa estar associado a outro algo, como ocorre nos eixos da Teoria do pensar, e, então, a dupla analítica é capaz de se encontrar diante do mesmo ponto da experiência. Esta possibilidade de transformação, em O, para fora do espaço cartesiano, leva Bion a novas formas de pensar sua clínica. O estado de mente sem memória, sem desejo e sem necessidade de entendimento (1965b/2014, 1967/2014) busca uma presença no aqui-e-agora da sessão que permita revelar todas as camadas e movimentos fugazes promovidos pela mente em um encontro analítico.


Entre nós, entre as nuvens, entre nós e as nuvens – cesura

 

Há, ainda, um conceito que nos interessa muito para o presente trabalho, apresentado por Bion mais ao fim de sua obra. Uma vez que O configura-se como uma verdade incognoscível (ou seja, não podemos conhecê-la, mas eventualmente tornamo-nos) e que buscamos nos aproximar dela, sem hierarquizarmos qual o caminho certo para encontrá-la, mas trocando com nossos pacientes as transformações que fazemos da experiência emocional que vivemos em uma sessão, então é preciso encontrar um ponto do espaço que privilegie o olhar para os trânsitos, para o movimento infinito de O. Este espaço, o entre, que tolera simultaneamente a continuidade e a ruptura entre estados de mente, Bion denominou de “cesura”, associando-a a um trecho de Freud (1926/1969, p. 162) quando diz “Há muito mais continuidades entre a vida intrauterina e a primeira infância do que a impressionante cesura do ato do nascimento nos teria feito acreditar”.


Esta noção de cesura resulta da possibilidade de encontrar trânsitos, continuidades, saltos quânticos no funcionamento mental entre a mente embrionária, a mente primitiva e a mente edípica. Ou, pensando no fragmento clínico apresentado, um trânsito entre um pensamento articulado e uma cumulonimbus. Nas palavras de Bion (1975/2014, p. 49):


Reformulando a afirmação de Freud, para minha própria conveniência: Há muito mais continuidade entre quanta19 autonomamente apropriadas e as ondas de pensamento consciente e sentimento do que a impressionante cesura da transferência e contratransferência nos fariam acreditar. Então...? Investigar a cesura; não o analista; não o analisando; não o inconsciente; não o consciente; não a sanidade; não a insanidade. Mas a cesura, o vínculo, a sinapse, a contra-transferência, o humor transitivo-intransitivo.


Ao fim de sua pesquisa, Flores (2021, pp. 143-144), ao tratar exatamente do mesmo tema, identifica uma passagem oportuna para pensarmos a respeito das evoluções das noções de complexidade em Bion:


A ideia de cesura parece elevar um campo de conceitos intersticiais para um novo patamar. Intersticiais porque notamos, ao longo de seu trabalho, que Bion desenha fronteiras conceituais para fundamentar suas observações. Quer seja a barreira de contato (...), ou até mesmo as hifenizações que ligam palavras que dariam outro sentido se soltas, estes espaços de trânsito entre


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19  Unidade de medida da física, comum às teorias quânticas.

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elementos expressam, em abstrações, a dinâmica de uma teoria que Bion, insistentemente, aponta falhar inexoravelmente toda vez que se aproxima da experiência emocional. Bion, mais próximo ao fim de sua obra, passa a empreender um esforço de se transportar para além dos pares antitéticos, para além dos conceitos que pressupõem alternâncias. O resultado é o exercício de, através da imaginação radical, ocupar lugares intersticiais, olhar desde a cesura.

 

A ideia de cesura resolve, em termos epistemológicos, o problema da ruptura com as articulações, vínculos. Troca o dilema entre dois botões por um lugar intersticial que busca, ao máximo, evitar a negação de qualquer parte envolvida na apreensão de um funcionamento complexo. Na dupla seta, ↔, na compreensão espectral dos conceitos, deveríamos estar em um ponto exatamente no meio da reta, sem tender à escolha de um lado, mas observando os trânsitos, as mudanças, as transformações.


Parece que estamos diante do pensamento complexo, mas as linhas escritas até aqui infelizmente pouco nos aproximam dele. São expressões em K, conhecimento, de uma experiência inalcançável, em sua complexidade, pela condição espacial da palavra. A organização espacial de um texto não nos aproxima da experiência psíquica. São alternâncias de pensamento dentro de uma estreita linearidade, com infinitos pensamentos (alguns pensados por nós, a maioria ainda não) escondidos nos pontos e nas vírgulas até aqui redigidas. Gostaríamos que as palavras pudessem levar quem as lê a um encontro com a fugacidade dos pensamentos, no entanto, isto é impossível. A mente move-se mais rápido e em mais camadas do que as palavras, do que os olhos, do que a boca contraída de um paciente ou as gargalhadas silenciosas são capazes de alcançar. As palavras interrompem o pavor gerado pela infinitude e são, inclusive, uma proteção contra a dinâmica insana que corre por baixo de nossa capacidade de apreensão, linearmente associativa e espacialmente tridimensional, denominada por Freud de processo secundário. Pressupor que a complexidade pode ser exprimida em linhas consiste em uma inevitável cegueira. Nas palavras de Morin (2015, p. 14):


Mas então a complexidade se apresenta com os traços inquietantes do emaranhado, do inextricável, da desordem, da ambiguidade, da incerteza... Por isso o conhecimento necessita ordenar os fenômenos rechaçando a desordem, afastar o incerto, isto é, selecionar os elementos da ordem e da certeza, precisar, clarificar, distinguir, hierarquizar... Mas tais operações, necessárias à inteligibilidade, correm o risco de provocar a cegueira, se. elas eliminam os outros aspectos do complexus; e efetivamente, como eu o indiquei, elas nos deixaram cegos.

 

Ao longo de inúmeras mudanças de estilo, Bion buscou resolver o problema da falta de alcance da linguagem para expressar a experiência psíquica. Escrita biográfica, poética, psicanalítica, matemática, diálogos imaginários, comunicações inquietantes. Esboçou a grade de pensamentos, em uma tentativa de organizar de maneira espacial como os pensamentos não-pensados e o pensador podem se encontrar, mas o instrumento é imóvel. Se por um lado nos inquietamos diante da imobilidade da grade, logo recordamos que quem está do outro lado é um pensador com pensamentos, e que somos nós que devemos dar movimentos ao imóvel apresentado por Bion.


Morin (2015, p. 6) acompanha-nos no desamparo e na impotência diante da complexidade, fazendo das linhas e palavras o único alcance possível para estados complexos:


(...) a ambição do pensamento complexo é dar conta das articulações entre os campos disciplinares que são desmembrados pelo pensamento disjuntivo (um dos principais aspectos do pensamento simplificador); este isola o que separa, e oculta tudo o que religa. Neste sentido, o pensamento complexo aspira ao conhecimento multidimensional. Mas ele sabe desde o começo que o conhecimento completo é impossível: um dos axiomas da complexidade é a impossibilidade, mesmo em teoria, de uma onisciência. Ele faz suas as palavras de Adorno: ‘a totalidade é a não verdade’. Ele implica o reconhecimento de um princípio de incompletude e de incerteza. Mas traz também em seu princípio o reconhecimento dos laços entre as entidades que nosso pensamento deve necessariamente distinguir, mas não isolar umas das outras.

 

 

Nosso tour de force para alcançar a nuvem

 

Espremamos os olhos, agora, na tentativa de identificar, a partir da nuvem de palavras acima, quais os possíveis vértices de observação do fragmento intersubjetivo referidos desde o início do texto. Não buscamos aqui, na conclusão, afirmar algo acerca do fenômeno – uma nuvem na cabeça –, mas esboçar hipóteses, desenhar vértices desta experiência, construir um campo de complexidades.


Se partirmos da perspectiva da Teoria do Pensar, podemos, por exemplo, conjecturar que o paciente depositou na mente do analista uma intriga feita de duas partes clivadas: uma expressão de insight acompanhada de uma imagem de imprecisão, resultado de uma identificação projetiva que levou o analista à própria análise, em busca de digerir tal processo. O riso e a memória persistente são os efeitos contratransferenciais deste evento, a partir da mente do analista.


Podemos lançar outras hipóteses sobre o mesmo fenômeno, levando-se em consideração que há um pensador e pensamentos em busca deste. A nuvem formada na mente do paciente pode ter sido originada de falas do analista, as quais se converteram nesta imagem, o que foi possível pelo aparelho de pensar de alguém cuja parte psicótica da personalidade era expressiva. A própria ideia de nuvem pode ser vista como expressão simbólica, o resultado de um longo trabalho da função α, capaz de converter em imagem onírica uma experiência emocional, da mesma forma que também pode ser vista como a pré-concepção, pela interpretação do analista, de algo que poderia ter sido mais investigado ao invés de cair em súbita concordância. Há, ainda, a possibilidade de estarmos tratando de duas ou mais nuvens, fenômenos distintos em cada mente e que, por ocasião do encontro, parecem se referir a um ponto comum.


A partir da concepção de Transformações, é possível pensar que há um fenômeno incognoscível para analista e paciente, definido como nuvem, o qual permitiu que ambos estivessem em contato e pudessem ter vivido um encontro. Podemos igualmente pensar que a nuvem foi mera coadjuvante de um encontro no qual estava em jogo se duas pessoas seriam capazes de sustentar uma conversa, daí a resposta rápida do analista em confirmar a existência de uma equivalência interna, mesmo sem saber o que estava dizendo.


A partir da noção de transformações, a assim nomeada nuvem do paciente, bem como todas as interpretações que fizemos acima, são transformações sobre um elemento incognoscível que apenas tangenciamos. A partir de seu ponto de vista, o paciente nomeia a própria experiência, e o analista, assim como nós agora, escrevendo, produz transformações sobre tal fenômeno, em busca de invariâncias que nos permitam alcançar o fenômeno original mobilizador deste texto.


Por fim, a partir da noção de Cesura, podemosentender que, para além de todas as perspectivas anteriores, é importante notarmos que há um elemento em transitória transformação. É neste trânsito que mora o trabalho analítico em que devemos prestar atenção: entre o paciente e sua expressão verbal, há um tour de force feito na escuridão de seus olhos fechados; entre sua comunicação e a nuvem da mente do analista, há um trânsito de elementos que percorrem tal espaço intangível; entre o fatídico evento e o divã do analista em questão, há inúmeras transformações feitas de risadassilenciosas e intrigasmentais; entre este longo evento e a escrita do presente trabalho, houve, também, um tour de force em busca de transpor, em tantas linhas, um breve insight – uma nuvem! 


Abstract

 

Cumulonimbus: a container for complexity


This work aims to explore the main conceptions of spatiality in Wilfred Bion’s work, mapping the author’s quest for multiple ways to access psychic space in order to encompass the complexity of the clinical phenomenon and the encounter between two minds. The author’s key points in this regard are the Theory of Thinking (1962/2022), Transformations (1965a/2014), and the notion of Caesura (1975/2014). To navigate this path, we will take as a starting point - or definitory hypotheses - an intersubjective fragment extracted from a clinical session, with the intention of addressing the multiple facets of the development of Bionian thought. In search of a framework that encompasses the notion of complexity, we will place the author’s work in dialogue with passages from Freud’s work, as well as with the texts of James Grotstein (2003) and Edgar Morin (2015).


Keywords: Bion; Complexity; Spatiality; Psychoanalysis; Transforma- tions; Cesura; Morin


Resumen

 

Cumulonimbus: un continente para la complejidad


Este trabajo tiene como objetivo explorar las principales concepciones de espacialidad en la obra de Wilfred Bion, cartografiando la búsqueda del autor de múltiples formas de acceder al espacio psíquico, con el propósito de abordar la complejidad del fenómeno clínico y el encuentro entre dos mentes. Los puntos clave en la obra del autor en este sentido son la Teoría del Pensar (1962/2022), Transformaciones (1965a/2014) y la noción de Cesura (1975/2014). Para trazar este camino, tomaremos como punto de partida - o hipótesis definitoria - un fragmento intersubjetivo extraído de una sesión clínica, con el fin de abordar las múltiples facetas del desarrollo del pensamiento bioniano. En diálogo con la búsqueda de un marco que abarque la noción de complejidad, situaremos la obra del autor en relación con pasajes de la obra de Freud, así como con los textos de James Grotstein (2003) y Edgar Morin (2015).


Palabras clave: Bion; Complejidad; Espacialidad; Psicoanálisis; Transformaciones; Cesura, Morin


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Recebido em 17/10/2023 Aceito em 06/03/2024 

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